Conto enviado pelo Professor Henrique Cunha Junior da UFC sobre Democracia Racial.
HISTÓRIAS INTRODUTÓRIAS PARA CRIANÇAS
Conversávamos à porta da sala de aula, a professora Sônia e eu. Em meio ao falatório e início de algazarra que se formara, havia uma aluna que chorava.
- Me dê licença um pouco – diz a professora.
- Por que você está chorando?
Benedita, esfregando os olhos hesita um pouco e diz:
- Eles estão me chamando de carvão e Bombril.
- Não liga não. Vá brincar.
Constrangida e com ar de quem procura justificar a democracia racial, a professora com a voz meio tom, meio acanhada, procurando palavras vai se virando para mim e diz:
- É sempre assim! Fico zangada com as crianças e triste comigo. Mas, isso não muda nada. É um problema que não tem solução, não é?
Imediatamente me veio a idéia de criar algumas histórias que de alguma maneira, fosse para as crianças uma fonte de soluções das dificuldades e as preparasse para refletir sobre os conceitos da sociedade. Histórias que abririam caminho para um inconsciente coletivo democrático.
CONVERSANDO COM A AVÓ DE MEIRE
- Bombril, Bombril!
Esta era a tristeza de Janete, uma pequena e linda garotinha que tinha, todos os dias, de enfrentar os seus coleguinhas de classe com as suas gracinhas racistas e ficava muito magoada com isto.
Janete sentava ao lado de Meire, na segunda fileira da sala. Meire vivia também a importunar Janete. Ríspida, severa, de olhar forte, Meire dizia entre os dentes:
- Não chore, não chore. Você não tem porque chorar e sim porque se orgulhar.
Meire tinha sido responsável por Janete ter saído do fundo da classe para frente. Embora Janete preferisse o anonimato do fundo da sala, ao lado de Meire, ela deixou de ser a pancadinha da sala. Foi assim: um dia, quando Janete chorava, Meire disse bem alto para que a classe toda ouvisse:
- Minha avó sempre diz que negro para ser feliz tem que sentar na frente da sala para ser visto e admirado por todos.
A professora, surpresa, sem saber o que fazer, sem encontrar nenhuma razão, diz:
- Está bom assim. Ela senta ao seu lado. Desta forma, você poderá ajudá-la a não brigar tanto.
A Janete não gostou muito da mudança, mas como no pátio todas as crianças respeitavam a Meire, não mexiam com ela e ela junto com a Meire, parecia mais protegida. Pelo menos, deixava de ser o saco de pancada da classe.
As outras crianças aos cochichos diziam:
- Não briga com a Meire, a avó dela é macumbeira e pode fazer mal para você.
Meire era uma menina muito feliz, alegre e solta. Tinha como detalhes marcantes um sorriso enorme contagiante e um festival de arranjos na cabeça. Todos os dias, ela ia à escola com um penteado diferente. Às vezes eram trancinhas, outras argolinhas e bolinhas coloridas e outras vezes um afro alto e bem batido. Se algum dos colegas mexia com ela, tinha uma resposta na ponta da língua par a situação. Não adiantava. Nada das coisas faladas pareciam atingi-la.
Um dia, a Janete perguntou a Meire porque ela era tão alegre, por que estava sempre de bem com a vida, apesar dos colegas viverem a debochar da cor da pele e dos cabelos enroladinhos, do nariz e da boca de negro.
- Porque eles não sabem o que dizem.
- Não sabem o que dizem? Sabe, eu não gosto disso. Eu não gosto de ser preta.
- Não diga isto. A sua avó não te contou por que as coisas são assim? Ela nunca te levou para passear no mundo dos ancestrais?
- Ancestrais? O que é isto?
- Ancestrais. Na sua casa não tem o quarto dos ancestrais?
- Não. Não tem. O que é isto?
- Ancestrais. Bem, a sua avó não te contou?
- Não contou. A minha avó foi embora para Minas há muito tempo. Meu pai a mandou embora porque ele não gostava dela. Ela foi para a casa da minha tia.
Fez-se um ar de preocupação nos olhos de Meire. Depois, a cara mudou ficando entre o espanto e a dúvida. O que fazer? Em seguida ao breve silêncio de dúvida, a solução:
- Já sei! Depois da aula, vamos à casa da minha avó e lá você vai ficar sabendo por que somos como somos e por que gostamos de ser assim. Lá você ficará sabendo o que são ancestrais.
- Eu não gosto. Eu queria ser loira, de olhos verdes e rica.
O silêncio e o olhar de reprovação dispensaram qualquer outra atitude de Meire.
o sinal do fim do recreio chamou para a fila e esta os conduziu à sala de aula.
- Meire, Meire, nós vamos mesmo à casa da sua avó?
- Vamos.
- Não tem perigo?
- Não. Não tem. Por que haveria de ter?
- Você tem certeza de que ela sabe por que nós somos assim?
- Sabe. E se ela não souber, nós perguntamos para os ancestrais.
Foi uma tarde longa para Janete. De tempos em tempos, ela queria saber as horas, se iriam ou não ver a avó, se ela sabia... Tinha um misto de ansiedade e receio, de curiosidade e de medo.
Finda as aulas, as duas foram pela rua brincando. Atravessaram o campinho e por fim chegaram à casa da avó.
Era uma casa esquisita, toda cercada de madeira, cheia de árvores no quintal e não muito conservada. Uma casa extremamente varrida com o chão da sala bastante encerado.
Meire entrou na frente chamando pela avó e conduzindo a amiga que estava com os olhos arregalados, meio receosa e com medo. Janete morava nos prédios de um conjunto residencial cheio de apartamentos. Antes, já tinha estado em outros bairros na vila, mas não se lembrava da casa da avó de Meire. Tudo ali lhe parecia muito estranho, até um pouco intrigante.
A avó Josefina era uma senhora muito preta e gorda. Sentada na ponta da poltrona, abraçou longamente a neta assistida, à distância, pela companheira. A suavidade da voz da avó preenchia o ambiente e de pronto cativou Janete.
A Meire disse quase aos suspiros no ouvido da avó:
- Esta é a Janete. Sabe, ela não tem avó. Lá na casa dela, não tem quarto dos ancestrais.
E mais baixo ainda:
- Ela não gosta de ser negra.
A avó puxa um enorme suspiro, aumenta o tamanho dos olhos, como grau de gravidade da situação e torna lentamente a cabeça para a direção da menina.
- Ah! Você então é a Janete? Venha aqui - sacudindo as mãos, fazia sinal para a menina se aproximar.
- O que você quer saber?
- Por que as crianças na escola me chamam de Bombril? Eu detesto isto.
- Hum... – resmungou com profundidade a avó.
- Vocês querem limonada? – perguntou a avó, já se movimentando para ir buscar. Demorou um pouco e trouxe dois enormes copos com fresca limonada, na qual as crianças afogam a sede.
- Bebam devagar, devagar, como gente educada.
A senhora deu meia volta pela sala como quem procurasse alguma coisa e encontrou. Era um pedacinho de madeira preta. Sentou-se novamente e trouxe Janete para junto de si acomodando a menina no colo.
Para Janete aquilo começava a ficar a ficar muito bom. Havia muito tempo que não sentia um agrado, nem mesmo um colo amigo. Aproveitou então, para se acomodar melhor e olhou melhor para aquela senhora.
- A senhora vai me dizer por que somos pretos assim?
- Vou. Vou, mas antes, para saber estas coisas teremos que viajar para muito, muito longe. Para bem distante daqui.
- Oba! Vamos para a terra dos ancestrais. Eu adoro isto! – gritou Meire.
- Mas eu não pedi para minha mãe. Ela não vai deixar. Ela nunca deixa eu ir a lugar algum - replicou preocupada, Janete.
- Eu me chamo Josefina. A viagem para a terra dos ancestrais é feita aqui mesmo. É só deixar a imaginação ir distante, muito distante. Tão distante quanto a imaginação possa ir e dizer as palavras em Iorubá de viagem à terra da felicidade.
- Repitam comigo:
- Awa lo si ile ayo
- Ile awlon to bi awa
- Ile ayo
- Vamos viajar, vamos para a terra da felicidade. Vamos para a terra dos ancestrais.
- Awa lo si ile ayo
- Ile awlon to bi awa
- Ile ayo
E as meninas repetiram.
- O que quer dizer isto? – indagou Janete.
- Bem, isto é segredo nosso. Estas palavras querem dizer terra da felicidade, onde moram todos os nossos antepassados. Aqueles que nós chamamos de ancestrais.
- É a terra dos mortos? - perguntou espantada a menina.
- Não. É apenas a terra dos ancestrais. Ninguém morre, apenas vai para lá para descansar e zelar por nós – foi dizendo a Meire.
- Agora vamos imaginar as coisas. Meninas fechem os olhos e tentem imaginar as coisas gostosas da vida.
- O que você está imaginando, Meire?
- Sorvete de chocolate e passeio no parque.
- E você, Janete?
- Eu? Em pudim de coco e banho de piscina.
- Hum... Pudim de coco! Então, vamos comer e apreciar o pudim de coco. Respirem fundo, fundo, fundo para dar uma mordida no pudim. Hum... Este pudim está uma maravilha!
Foi fluindo uma imaginação, atravessando cada elemento da natureza e aprofundando num diálogo imaginário entre a avó e as crianças. A descoberta de um mundo maravilhoso e riquíssimo. De lado, queimavam alguns dos segredos da casa que dava um profundo e delicioso aroma no ambiente.
Rapidamente, a imaginação passeava distante, distante, muito distante, o quanto distante a imaginação podia imaginar, por algum lugar onde havia quase somente pessoas como nós e poucos brancos. Pessoas bem felizes porque havia um forte respeito mútuo, um lugar onde não faltava nada porque as pessoas colaboravam umas com as outras e repartiam tudo que cada um necessitava.
Era um lugar onde as mulheres recebiam um grande respeito, pois são elas as mães de todos. Um lugar cheio de mercados coloridos, de roupas multicoloridas e de muita fartura. Um lugar sem armas e sem donos de tudo, onde cada um era dono do pedaço sem roubar nada, sem invadir um o pedaço do outro. Um lugar perdido na imaginação, existente há muito e muito tempo atrás, no meio da África. Um lugar perto do coração de cada um de nós, onde podemos respirar a paz e a liberdade. Um lugar de onde muito de nossos avôs e avós vieram tomados da terra dos Iorubás.
A terra do Iorubás é uma terra de sabedoria, magia e equilíbrio. Sabedoria para com a vida, com as coisas da natureza, magia com as vantagens que completam a vida humana em equilíbrio com tudo. Na sua medida e lugar, nem para mais, nem para menos. Na medida exata de ser e poder ser feliz.
De um ponto de luz muito negro e muito luminoso cresceu uma esplendorosa imagem, que se transformou, que foi e voltou como que procurando percorrer todos os espaços sem sair do lugar. Eram riscos de festas, ruído de povo, estalos de vozes e enfim, uma enorme praça de um mercado.
Lá, bem no meio, estava a avó Josefina, as duas crianças e mais uma centena de ilustres e bem vestidas pessoas que se diziam ancestrais delas duas. Era uma imensa família que marca um encontro indefinido e ninguém falta pois a energia dos pensamentos pode chamá-las.
E eles se puseram a falar como que adivinhando os pensamentos. Até que uma das mulheres começou a contar uma longa e nova história.
- Você sabe, Rose Meire ... é assim o seu nome, creio.
A garota balançou a cabeça em sentido afirmativo e depois disse:
- É. Todos dizem, sim senhora.
E todos repetiram:
- O seu nome é Rose Meire.
Antes que ela entendesse e respondesse, continuaram:
- É. Sim senhora.
- A educação e distinção são fatos importantes entre nós. Só assim a terra dos ancestrais não se desfez. É só assim: pela educação e cordialidade é que se pode aqui estar.
- Bem Janete - retoma a senhora em torno da qual as pessoas passam a se reunir para ouvir – os cabelos enroladinhos e a pele negra como ébano, são duas histórias do tempo em que os seres, deusas e deuses caminhavam pelo mundo trocando histórias e conversas com as pessoas. Longas histórias, cheias de ensinamento e sabedoria. Histórias contadas ao pé de uma grande árvore de ébano.
Janete puxou a avó Josefina e pergunta:
- O que é ébano?
- Ébano - continuou a senhora que falava – é uma grande árvore de tronco duro, forte e infinitamente negro. A árvore cuja sombra sempre abrigou todas as conversas importantes.
- Bom, a história é sobre a cor da nossa pele...
Fazendo uma longa pausa como quem puxa pela memória e procura as palavras que dão curso aos pensamentos, a senhora pára e reflete, parecendo ter mexido e revirado o baú da lembrança, as encontra e diz:
- Pois é... neste tempo, deixe me ver, que os seres humanos não tinham cor. Todo mundo era transparente, cristalinos como vidro e água. Não existiam negros, brancos, amarelos ou vermelhos. Eram todos transparentes.
A senhora retirou um lenço de seda de dentro de um cesto, enxugou a fronte, bebeu um pouco de água e em tom solene, continuou:
- Serem todos transparentes era ruim, pois ninguém podia ficar no sol senão, a pele cozinhava como bolinhos de inhame em óleo quente.
Nesse instante, alguém pôs alguns bolinhos de inhame num grande tacho e ficou fritinho.
- Não era fácil. As pessoas só podiam trabalhar durante a noite e tinham que ficar dentro de casa com portas e janelas fechadas durante o dia se havia muito sol.
A senhora tomou uma fruta, repartiu os gomos e continuou a falar:
- Havia uma pequena aldeia que começou a procurar a solução para o problema de serem transparentes. Foram, um dia, conversar com Olorum, o Deus supremo, para saber se ele, com todo seu poder, poderia dar uma solução. Olorum disse com palavras sábias e comuns: “Usem a inteligência e as forças da natureza que encontrarão a solução.”
A senhora prosseguiu narrando o acontecido:
“E assim, os homens e mulheres daquela aldeia passaram a fazer tentativas, a procurar idéias. A conversa se espalhou de lugar em lugar. Até que todo mundo estava procurando a mesma coisa. Depois de muito tempo e de muita procura, a solução para o problema humano, de falta de cor, vai chegar a um pequeno povoado onde tudo funcionava muito bem porque eles eram regidos por quatro mulheres sábias. As mulheres sábias se alternavam no poder e sempre conservavam os segredos e magias da sabedoria. Sabedoria que tinha como fonte a consulta sobre decisões a todas as cidadãs e todos os cidadãos da aldeia. Na terra das mulheres sábias, se começou a procurar a solução, procurando as idéias que o povo poderia ter sobre o assunto.
Um dia, as mulheres sábias ouviram uma velha senhora, muito, muito velha. Tão velha que tinha vivido mais que o tempo. Parecia que mesmo que o tempo fosse muito velho, não conseguiu ser mais velho do que ela. Esta senhora deu uma magnífica idéia que poderia ser que funcionasse. Disse para cortarem algumas árvores daquelas que são muito fortes e têm um sumo muito negro e gosmento e que uma vez cortada as árvores, deveriam ralar todos os troncos e ferver num grande caldeirão. Ferver por quatro dias e quatro noites e depois todos deveriam mergulhar naquele banho.
Assim se fez direitinho como a explicação e depois as pessoas mergulharam todos num grande tacho e saíram negramente negros, brilhando com uma cor forte de pele tal qual as pessoas negras hoje. Depois, foram ficar ao Sol, a tinta secou e as pessoas ficaram protegidas contra o Sol e lindamente coloridas. Deu certo e a alegria foi tão grande que se seguiu uma semana de festas em comemoração. Os atabaques tocaram dia e noite como nunca se ouviu antes.
Na outra semana, as pessoas da aldeia foram até o mercado, na cidade, para vender seus produtos. Quando lá chegaram foram motivo de sensação e inveja. Todos queriam aquela cor negra que além de dar beleza ao corpo, ainda os protegia do Sol. Todos queriam esta cor e pediam para revelarem o segredo da cor da pele. Só que os habitantes da aldeia não contaram e assim voltaram para a aldeia deixando todo mundo inconformado. Tempos depois, todas as cidades vizinhas estavam procurando descobrir o segredo. Um dia, resolveram ir, em comissão, conversar com as mulheres sábias da aldeia que detinham o segredo da cor. Foram à aldeia dos negros, como ficou conhecido o lugar, para saberem o segredo. Eram milhares e milhares de pessoas transparentes, enroladas em panos e trapos, com medo da luz do Sol, que mesmo estando fraca, era evitada. Chegaram num dia que quase não havia Sol mas, assim mesmo, as pessoas andavam cobertas com panos para evitar a luz.
- Senhora – dizia o representante dos transparentes – não é justo que vocês nos privem desta maravilha que é a cor da pele. Ensine a nós como podemos ficar negros e assim toda a humanidade vos será eternamente grata.
As mulheres sábias da aldeia trocaram olhares entre si como se estivessem resolvendo e decidiram revelar o segredo. Chamaram um porta-voz e pediram para ele que explicasse a toda humanidade, o segredo. Assim, se combinou para o dia seguinte, a grande revelação.
No dia seguinte, a praça estava lotada e quando o porta-voz ia falar, as expectativas eram muitas. Havia uma grande ansiedade no ar. Nisto, quando ia começar a falar, olhou para o lado do grande tacho onde estava a tinta. Rapidamente, as pessoas compreenderam a magia e desesperadas em tornar-se negras, não esperaram o porta-voz explicar como funcionava o processo e foram todos desorganizadamente ao tacho. Mergulharam todas ao mesmo tempo. Bom, o tacho não tinha tinta para todo mundo e assim as pessoas pegaram um pouco de tinta e ficaram apenas com a cor clara, meio pálida, como são os europeus. Desta forma, apareceram os com muita tinta e os com pouca tinta. Os de pouca tinta, apesar de mal aplicado o processo, foi o suficiente para pegarem alguma cor e se protegerem do Sol. Como eles não tinham a proteção completa contra o Sol, se mudaram para as terras de menos sol e assim, nasceram as cores do povo humano.”
- Puxa, foi assim? – perguntou Janete.
- Sim. Foi assim – respondeu a senhora.
E os cabelos, por que são assim?
- Ah! Os cabelos. Esta é uma outra história, mas eu já estou cansada hoje e você volta outro dia. Nós te contaremos esta história.
- Não! Eu quero saber agora! – disse a menina em tom malcriado e ríspido.
A rispidez e a teimosia quebraram o encanto e levaram as pessoas da terra da imaginação e dos ancestrais embora.
- Viu o que você fez? – disse Meire. Não se pode dizer não, antes de refletir e pensar o que significa. Não se pode dizer coisas em tom de malcriação na terra dos ancestrais.
O suspiro fundo da avó Josefina, soou como reprovação paciente pela perda daquele clima de magia e iniciando a despedida das crianças, deixa a continuidade da lição para outra ocasião.
- Até amanhã, suas mães devem estar esperando a volta para suas casas.
O DIA SEGUINTE
No dia seguinte, quando Meire chegou à escola, Janete já estava nas suas disputas diárias com os colegas.
- Nega de piche! – gritava um menino.
- Sou negra de piche, mas sou feliz. Seu limão azedo!
Os meninos não entenderam. Ela não ficou revoltada como sempre, nem muito menos quis agredir ninguém e ainda por cima, não terminou chorando.
A turma voltou a insistir:
- Macaca preta.
- Ela olhou com desprezo:
- Vocês não sabem o que falam. Certamente, vocês não conhecem nada.
Desta vez, Janete irritou os meninos que por certo iriam apelar para violência, mas aí chegou a Meire e todos tinham medo da macumba.
Meire ficou feliz pois Janete reagiu com inteligência. O poder não é a força, mas sim a inteligência, assim dizia o pai de Meire. A força é o poder dos animais, dos ignorantes, dos incultos. Gente inteligente resolve as questões com astúcia, com palavras, com argumentos.
Meire deu uma forte piscada para Janete, pela primeira vez, como íntimas companheiras e fechando a mão, deu um leve soco no ombro e foram para longe dos meninos.
- Eu ainda pego esta neguinha – resmungou um dos meninos.
Recebeu um olhar fulminante, superior, arrasador daqueles que desmonta qualquer um. Recebeu um forte olhar negro de extrema confiança e nenhum medo. Um olhar cuja certeza intimidava qualquer uso da força.
- Meu, a avó dela é macumbeira. O Rafael um dia quis bater nela e ficou estendido no chão. Ela é protegida. É corpo fechado e ainda por cima é capoeira das fortes. Todos os dias depois da aula, ela vai naquele clube de negros para jogar capoeira. Te cuida. Não entra numa de medir força com ela.
As duas meninas continuavam a caminhar quando Janete parou e disse:
- Sabe, eu quero ir à casa da sua avó outra vez.
- Mas você tem que ter respeito. Tem que pensar antes de falar. Sabe, os ancestrais são muito educados e cultos, falam tudo educadamente. Só podemos senti-los se usarmos a sensibilidade e cortesia.
- Como é que se consegue ir outra vez à terra dos ancestrais?
- Ah! Isto é simples, mas é difícil. Como tudo na vida, como diz a minha mãe, tem um preço, tem um trabalho. Ir à terra dos ancestrais é como plantar uma árvore: se põe as sementes, se joga água todos os dias, se cultiva e só depois de muito trabalho é se pode colher os frutos. Se não for assim, não tem frutos bons, às vezes, nenhum fruto e então temos a fome. Para você ir lá outra vez, tem que pensar muito antes. Tem que gostar de você mesma. Tem que gostar de ser negra.
- Não. Eu não gosto, mas ontem foi muito bom. Hoje também, mas mesmo assim as pessoas não deixam a gente em paz. Ninguém gosta de nós, morenas.
- Ninguém gosta de quem não se gosta e você só vai ser feliz no dia em que gostar de você mesma.
- Por que eu não posso ir à casa da sua avó de novo hoje e porque eu tenho que pensar muito?
- Porque você não fez as lições de casa, porque você não presta atenção nas aulas, porque você não é persistente nas lições e porque você perde muito tempo dizendo bobagens.
Os dias se passaram e a Janete sempre querendo voltar à casa da avó de Meire para saber por que o negro tem o cabelo enroladinho, por que os brancos não gostam do negro, por que o negro tinha sido escravo e por que e por que...
Bem, eram perguntas e mais perguntas repetidas demais, porém, uma condição a mãe de Meire havia instruído para impor a Janete. A Meire tinha longas conversas com a mãe e sempre falava dos colegas de sala e a mãe sempre a estimulou a ajudá-los. Dizia ela que na sociedade, todos são responsáveis por todos e que se não for assim, ninguém consegue viver bem, todos vão estar contra todos e todos vão se tornar pessoas tristes com problemas e vida difícil. Sobretudo, a mãe de Meire sempre procurava zelar pela Janete: fosse através da filha ou mesmo dialogando com as professoras, fazendo aquilo que a mãe da Janete não sabia ou não podia fazer.
Os dias foram passando e as conversas entre Meire e Janete iam aumentando. Por vezes, eram elas e outras meninas e meninos da classe que iam se enturmando. Como nem tudo é um mar de rosas, sempre havia aqueles que preferiam destruição das coisas boas em lugar da construção. Meire dizia que estes nunca seriam nada, não conseguiam um sorriso todas as manhãs, pois já estavam revoltados com o dia, mesmo antes de ele começar.
Eis que se passaram quatro dias e no quinto dia, Janete veio à casa de Meire para pedir ajuda para fazer lição de casa. No dia seguinte, Janete tinha um tom altivo. Queria mostrar que já sabia a lição. Não via a hora de a professora chamá-la - coisa que sempre detestava e procurava fugir, pois tinha medo, fraqueza e se julgava incapaz.
A impaciência não deu lugar ao devido momento. Na primeira oportunidade, antes de uma das colegas, ela disse:
- Eu fiz e eu sei.
A professora estranhou, estava surpresa. Alguma coisa tinha mudado. Mais surpresa ficou com o acerto.
Saindo da escola, Meire disse:
- Você fez o que devia. Agora está pronta para voltarmos e tentarmos visitar a terra dos ancestrais.
Chegando à casa da avó, rapidamente Janete foi fechando os olhinhos e começou a repetir as palavras mágicas.
1. - Vamos fazer uma longa viagem.
- Vamos para a terra da felicidade.
- Vamos para a terra dos ancestrais.
- Awa lo si ile ayo
- Ile awlon to bi awa
- Ile ayo
Henrique Cunha Junior é Professor titular da UFC em 1995, concurso com tese. Membro do Nucleo de Africanidades Cearaese - NACE, mebro doInstituto de Pesquisa da Afrodescendencia - IPAD. Doutor em Engenharia -1983. Titulo de Livre Docente - USP -1994. Estudei engenharia - USP e sociologia na UNESP. Fiz especialização em economia - Nancy - França. Escrevo na coleção de literatura negra - Cadernos Negros.